sexta-feira, 13 de março de 2009

Lygia Clark

Vivemos num mundo imagético. Deixamos, aos poucos, de ter contato de primeira pessoa com o mundo objetivo. Mudamos de canal, falamos ao celular e sacamos dinheiro através de forças poderosas invisíveis.

O mundo virtual, sem limites, vai tomando o lugar do mundo físico em nossas vidas. Trabalhamos, convivemos e nos divertimos por telas, interfaces que nos dizem o que fazer e nos guiam aonde queremos chegar.

Perturbados com a velocidade deste novo mundo, compartilhamos nossas loucuras por meio de redes e mídias sociais, buscamos forças na força invisível do divino – religiões, seitas, rituais – e acordamos todo dia em dívida com a informação que prolifera sem parar.

As forças invisíveis do mundo online podem nos trazer grande liberdade (virtual), mas podem também nos oprimir: vivemos com medo de inimigos igualmente invisíveis: vírus (de computador ou não), bactérias, assaltantes, terroristas. Vivemos trancados em locais seguros, mantendo contato com todo o planeta por janelas eletrônicas.

Oprimidos, com medo e confusos, sentimos necessidade de nos expressar: berramos gritos de guerra em torcidas, nos exibimos em webcams, falamos de nós mesmos por horas em chats e transformamos o corpo em outdoor de nossas opiniões.

Sutilmente loucos, procuramos alívio instantâneo em bebidas místicas como o daime, abusamos de drogas, lícitas ou não, e dançamos frenéticos ao ritmo de tambores (samba, candomblé, Afroreggae, Stomp).

Chegamos a pintar a face (manifestações de rua, estádios esportivos, carnaval). Enfim, tentamos simular a vida dos ancestrais, que viveram num mundo mais simples, fácil de entender: bastava alimentar e proteger a tribo.

Ou seja, o primitivo, hoje, nos dá alívio.

Lygia sabia disso. Seus pensamentos mais herméticos guardavam este segredo: a arte precisava estar a serviço da libertação do ser humano que hoje existe em células, comunidades, perfis online.

Verdadeiramente livre, Lygia esteve a frente de seu tempo, hoje fica claro. Compartilhou ao transformar o corpo do outro no objeto de sua arte muito antes da web 2.0, em que a ordem do dia é compartilhar.

A auto decretada não-artista deu o objeto da arte na mão de seu interlocutor, como em “Caminhando”, e estabeleceu que a “arte é o seu ato”. Fundou a arte participativa, interativa e compartilhada desde então.

Lygia destravou as portas do inconsciente através de sua arte e propunha isso como manifestação artística transcendental. Objetos sensoriais e relacionais, entre muitos outros artefatos, abriam um canal direto com o primitivo interior (self, no jargão de Lygia), criando um estado de auto-conhecimento revelador e, por isso, libertador.

O mundo de Lygia Clark é hoje o antídoto para o veneno da modernidade. Faz do contato físico real a revelação do eu e do outro. É mais catártico e legítimo que mil palavras ditas na terapia psicanalítica clássica. Faz do contato humano o abrigo que buscamos no mundo virtual e que, em verdade, lá não temos.

Resetar (teclar reset) Lygia Clark é restartar o mundo. Resetar o mundo é restartar Lygia Clark.

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